No dia 13 de abril de 2023, entrevistamos Michelle Lima, Diretora Pedagógica do Instituto Camará Calunga, que compartilha conosco um pouco sobre sua história e desenvolvimento na instituição.
O Camará foi fundado por João Guilhermino, Lumena Celi e Viviane Gorgatti, que trabalharam no fechamento dos manicômios em Santos, como o Hospital Anchieta. Inicialmente focado no enfrentamento ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, o Camará acompanhou um grupo de meninas em situações vulneráveis. O acompanhamento resultou em um livro e filme, respectivamente “As Meninas da Esquina” e “Sonhos Roubados“. O fundador, João, passou a participar de políticas públicas e conferências relacionadas ao tema e se envolveu nos territórios.
Michelle, filha de migrantes nordestinos, nascida em Aracaju e desde os 5 anos de idade moradora do México 70, em São Vicente, conheceu o Camará aos treze anos. Se envolveu por sua paixão pela dança. Participou de congressos e cursos, atuou como facilitadora nas escolas e se engajou em atividades de defesa de Direitos das Crianças e Adolescentes, Direitos Humanos e Educação, como o III Fórum Mundial de Enfrentamento à Exploração Sexual de Criança e Adolescente, no Rio de Janeiro e o III Fórum Mundial de Direitos Humano, evento que contou com a presença do ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, em março de 2023, em Buenos Aires.
Apesar de ter se afastado por um período e enfrentado dificuldades pessoais, ela decidiu retornar ao Camará e encontrou apoio para se reinserir na dança e no trabalho com as mulheres do território. Ela se tornou uma educadora de referência, passou a ocupar cargos de gestão no Instituto e atualmente é a Diretora Pedagógica.
a dança aqui é um pouquinho diferente. Aqui a gente vai se apresentar também em alguns lugares, mas não vai se apresentar em festas, nas ruas, se for desejo do grupo a gente vai se apresentar em concurso, mas a ideia é que a gente olhe pro nosso corpo, né? Que a gente faça esse resgate, que a gente trabalha algumas questões e que a gente converse muito. A gente não vai se avançar, a gente vai conversar muito.
Ana Paula
A partir de então, e de diversos cursos promovidos pelo Camará, como de Mediação de Conflito ou curso de Urbanização de Grupo, por exemplo, foi possível atuar nas escolas com jovens facilitadores, engajar adolescentes e jovens no Eureca, além das nas manifestações de hoje em dia em defesa da educação.
Foi incrível porque me deu um lugar de novo, um lugar na sociedade, um lugar que, enfim, como me posicionar na minha casa, como ser uma mãe diferente da mãe que eu tive, não perdendo a história da minha mãe, tendo ela como base, como pilar e contribuindo com as mulheres à minha volta.
Michelle Lima
Você conhece um pouco do histórico do João, da Valéria e da Ana Paula? Como ele se juntaram?
O João é acompanhante terapêutico e a formação dele vem toda dessa base. A Valéria Alves era uma adolescente acompanhada pelo Camará Calunga e que também se tornou Educadora. Hoje, a Valéria é a Vice-Presidente do Camará. E a Ana Paula também entrou como participante quando jovem, saiu já tem um tempo e está seguindo seu próprio caminho.
O Camará tem muito disso: as pessoas entram como participantes, se engajam, pois isso é importante para a vida, e então o Camará abre espaço para que essas pessoas, que vieram do território, possam ocupar lugar na gestão, levando à frente todas essas experiências.
Não é só quem vem da universidade. A gente faz esse complemento com quem vem do território, que é a “faculdade da vida”. A gente junta os dois grupos para conseguir enfrentar todos os desafios e trabalhar junto.
Muito se usa a palavra “território” aqui. Você pode explicar um pouco mais a respeito desse conceito, como você entende, como isso é levado aqui?
Tem alguns termos e adjetivos que a gente gosta muito de enfatizar aqui no Camará. Essa questão de territorializar, de você se reconhecer, de você se fazer presente no local onde mora, onde foi criado e estar atuante ali dentro é de extrema importância para a gente. A “favela”, a gente é favelado. Eu sou uma mulher que me apresento enquanto mulher preta e favelada, nordestina, enfim…
A gente tem vários territórios aqui e a gente gosta de poder fazer com que as pessoas se reconheçam dentro. São várias favelas, são vários territórios vulnerabilizados. Eles não são vulneráveis, eles foram vulnerabilizados pelas condições que as políticas colocaram essas pessoas. A gente gosta de ir trabalhando e estudando sobre isso com as pessoas.
Quanto a atuação do Camará, como que você vê essa responsabilidade frente à uma ausência do estado?
É uma responsabilidade muito grande. Conseguir fazer provocações com as pessoas, porque a gente desacomoda. A gente faz uma provocação para que as pessoas olhem para sua condição de vida. E quando você olha, te causa um monte de coisas. Um monte de angústia… E o que a instituição vai fazer para que não cause mais sofrimento para pessoa?
A gente quer estar em coletivo. Pois, o problema de uma pessoa não é só dela. Ela não está ali porque escolheu estar ali. Ela foi colocada. Então, as instituições têm acesso, porta de entrada nas políticas públicas na cidade, um entendimento pouco maior, acho que a nossa tarefa maior é passar a informação. Disseminar a informação e se colocar para estar junto. A partir desse momento, juntos com as pessoas, a gente consegue se agrupar e enfrentar algumas situações. Porque sozinho, muitas vezes, a gente não é ouvido e fica uma discussão muito rasa. Semanalmente, por exemplo, a gente está em um território para conversar com as pessoas sobre o que elas quiserem. Elas falam e a gente vem em contraponto.
Agora está nesse cenário de muitas ameaças e fake news que estão rolando. Então, ontem a gente foi para uma assembleia, João e eu. A gente colocou sete cadeiras em cima do palco da escola Lúcio Martins Rodrigues, na Vila Margarida, fez uma meia-lua em volta dessas cadeiras e quem iria sentar lá seriam crianças e adolescentes que estão vivendo com isso.
O tema da assembleia ontem foi o medo. De onde vem esse medo? Quais são os medos? Onde a gente coloca esses medos? Cada um foi falando de segunda-feira até ontem, que foi quarta, como foi o dia-a-dia na escola. E com isso várias cenas vieram.
Quem é que está fazendo com que esse medo se espalhe? E como a gente, em coletivo, vai enfrentar? As escolas vão fechar no dia 20? Então, vem todo mundo aqui para o Camará, a gente vai se encontrar e conversar sobre isso. Será que é a melhor estratégia fechar as escolas? Será que a melhor estratégia é colocar policiamento dentro das escolas? Como esses policiais estão atuando nas escolas? Ou, como esses policiais estão atuando dentro das escolas da periferia? Tudo isso a gente precisa conversar.
A gente não tem uma resposta, a gente não dá uma resposta. A gente conversa junto. Talvez a gente chegue em uma resposta coletiva, talvez a gente não chegue em resposta nenhuma. Nenhuma porque só o fato de estar fazendo essas provocações, já vai haver alguma mudança. A gente tem meninas que hoje conseguem puxar um assunto com a diretora, não aceitam algumas posições dos professores. É desse jeito que a gente vai atuando.
Você falou que o objetivo é disseminar informações, mas é possível observar a prática além da teoria e da conversa.
Uma coisa que a gente faz muito no Camará é ouvir. É praticar escuta atenta. Porque muita gente por aí fala que está ouvindo as crianças e adolescentes, mas será mesmo? Será que estão deixando eles falarem? Então, ao se colocar numa roda dessas, a gente quer falar o menos possível. A gente quer ouvir eles. Ouvir as histórias deles.
Por exemplo, quando a gente vai fazer uma roda de apresentação, a gente pergunta “Qual o seu sonho?”, “O que você faz?”, “Qual que é seu hobby?”, “Que música que você escuta?”.
E eles falam: “Nossa! Que diferente essa apresentação!”, “Eu nunca falei desse jeito…” Dá para a gente fazer vários tipos de conversas a partir disso. Você consegue acessar esse jovem, criar um vínculo com ele.
Então, o que a gente faz é praticar uma escuta atenta, criar o vínculo e a partir do vínculo fazer um mundo de coisas, desde se sentar numa roda e conversar até viajar juntos.
Explorando agora essa questão da Educação, medo, os atentados recentes, alguns indícios já apontavam a possibilidade de isso ocorrer no Brasil porque já estava acontecendo nos EUA há muito tempo. E comportamento que estava levando meninos a terem este tipo de atitude já estava sendo replicado aqui. Vocês acompanharam essa evolução de quando começou esse tipo de cultura pela internet até chegar efetivamente à uma tragédia? Houve aqui algum tipo de preparo aqui antes destas coisas acontecerem?
Principalmente na pandemia foi o momento em que a gente estava sempre acompanhando os noticiários. A gente está sempre olhando as pesquisas e a das reflexões que escritores têm feito. O João, por exemplo, gosta muito de jornal. Jornal impresso mesmo. Ele não é o cara das redes sociais, não tem nada. Quando ele vê uma matéria, comenta conosco. Foi o momento que a gente ficou muito assustada com a quantidade de crianças mergulhadas no aparelho celular e consumindo porcaria. E, quando a gente se encontra pessoalmente, não conseguem se desvincular do aparelho, não conseguem sair.
Além dos jogos muito violentos. Ficavam super felizes quando conseguiam comprar as armas nos jogos, quando conseguiam matar. E em alguns jogos que tinham mulheres, espancavam as mulheres. A gente já vinha conversando sobre isso. A proposta foi se encontrar presencialmente quando passar o pico (da pandemia) porque a gente precisa aprender a estar junto de novo.
Então, por exemplo, o TikTok, ao mesmo tempo que tem coisas incríveis, as pessoas estavam só acessando aquelas dancinhas, sem nem olhar para as letras das músicas. Logo a gente começou a problematizar aqui, com todos participantes. Que consumo desenfreado dessa cultura de massa das mídias sociais? O que eles estão fazendo? Eles estão alienando as pessoas.
A gente pegou o texto da Eliane Brum que faz uma análise sobre a infância. E o primeiro passo aqui foi colocar todos os celulares numa caixa e só pegar no aparelho quando a gente terminar a atividade. Isso foi decidido em consenso, não só entre os educadores.
“Ah! Mas e se minha mãe me ligar?” A gente cria uma estratégia, a não ser no caso de adolescentes que tenham bebê. Neste caso a adolescente sai para atender para a gente conseguir minimamente estar presente e discutir.
No grupo Coisa de Preta indagamos “Quais são os tipos de música que você está ouvindo”, “Quem você segue nas redes sociais?”, “Quem são as pessoas que estão te passando informação?”
A gente tomou uma decisão aqui no Camará de não republicar fotos dessas pessoas que estão cometendo esses ataques, essas mensagens que chegam pelo WhatsApp que a gente não sabe a fonte. Nós, enquanto Camaradas, não vamos disseminar essa informação.
Aproveitando que falamos dos dois anos de pandemia, vamos aumentar essa faixa de tempo e falar dos 4 anos anteriores, em que a violência e as fake news estavam intimamente ligadas ao governo. Inclusive, muito se falava a respeito de um “gabinete do ódio”. Como foi essa luta para uma ONG na cidade de São Vicente?
É muito difícil. Porque a gente não tem padrinhos políticos, a gente tomou essa decisão institucionalmente. Aqui cada um segue o seu partido. A gente tem algumas coisas em comum, a gente não vai ter pessoas bolsonaristas. A gente não vai conviver com este tipo de pessoa aqui institucionalmente. A gente tomou essa decisão.
E nesse período desses 4 anos, inclusive, nós fomos despejados da nossa sede. Porque a gente começou a enfrentar a política tanto aqui na cidade, quanto essa política governamental desse governo Bolsonaro.
E as famílias, com a chegada da pandemia, ficaram mais isoladas do que já eram nos seus territórios. E a gente começou a fazer várias provocações aqui na cidade. “Cadê as políticas públicas?”, “Porque que os CRAS não estão funcionando?”. E (a ordem de despejo) veio em forma de um cala a boca. Chegou um ofício nossa sede: “Vocês têm 30 dias para desocupar essa casa, porque essa casa vai virar uma casa de acolhimento.”
A gente não aceitou, as pessoas do território não aceitaram. A gente fez um manifesto e a resposta que veio foi “Se está tirando uma instituição para colocar um serviço da política pública, tá tudo bem.” Nem sequer se pensou como ficariam essas famílias. Para onde que iriam? Como a gente iria seguir com esse trabalho com vários territórios?
A gente resolveu ocupar esse novo espaço aqui, que era de um coletivo que já conhecia a gente e que estava fechada. Era uma creche essa casa e estava desativada porque a prefeitura alugou aqui e ela não pagou os seus funcionários. Não pagou as contas desse espaço e a creche precisou fechar. Eles adquiriram várias e várias dívidas.
O Instituto Camará Calunga veio pra cá, tinha um recurso, passou a pagar aluguel por esse espaço para eles conseguirem sanar as dívidas trabalhistas que adquiram por conta do não compromisso da prefeitura.
A gente o tempo todo discutiu com as pessoas, conversou com as pessoas, fez provocações sobre esse governo. Tinha várias famílias que são que são religiosas, são evangélicas e que compactuavam com esse governo e a gente seguia fazendo vários tipos de provocações:
Cara, olha onde você mora, olha a vida que está vivendo, você está passando fome e você está concordando com isso? Um cara que só dissemina ódio, olha essas informações!
Quando chegavam os prints, as notícias, a gente fazia horas de conversa para poder dizer: “Olha! Isso é mentira…”, “Olha isso daqui”, “Vamos ver um filme junto?” Várias vezes, durante o momento a pandemia, a gente fez cineclube online. Porque era importante.
Ao mesmo tempo em que estavam fazendo essas informações, fazendo as pessoas acreditarem nessas mentiras, a gente precisava não ficar só no embate dizendo “Olha! Isso é mentira”, “Isso não é”. Ao invés disso, vamos mostrar o outro lado? Vamos mostrar a história de uma outra perspectiva? A gente se sentava, estudava junto, lia, mandava textos, poesias no grupo do WhatsApp. Tudo para as pessoas conseguirem se alimentar com outras coisas que não as que estavam aí vendidas.
Também foi todo um trabalho bem forte de enfrentar a insegurança alimentar aqui na cidade. O Camará era a sede onde recebia tudo. A gente tem um grupo de mulheres que aqui da Vila, que conseguia se deslocar a pé, fazia entre 30 e 40 minutos de caminhada até a sede, higienizava tudo e embalava. A gente chamava os carros por aplicativo, higienizava o carro e mandava esses alimentos para os territórios. Lá uma família referência recebia tudo, distribuía para as outras e a gente fez essa grande rede para conseguir se apoiar nesse momento muito difícil.
E fazer um processo político mesmo nessa última eleição. De chamar as pessoas para virem para cá, de passar filmes, mostrar, falar sobre a história. Trazer um resgate, porque essa política não veio só desses 4 anos. Foi um projeto político para poder chegar aonde chegou.
De levar os jovens para tirar o título de eleitor, de receber alguns deputados aqui, inclusive, que tinham a mesma linha de pensamento que a gente. Então a gente trouxe alguns, fez roda de conversa. Ouviu eles, eles ouviram a gente para conseguir enfrentar isso.
Cara, a gente precisa mudar esse cenário. A gente só vai mudar se a gente estiver junto.
Você também mencionou a companhia Coisa de Preta. Você poderia falar sobre quais foram as respostas dessas jovens quando você perguntou que tipo de conteúdo elas estavam consumindo naquele momento e o que você observa hoje? E depois, eu conte um pouquinho sobre que é o grupo Coisa de Preta.
A gente começou a trabalhar com o grupo a questão das redes sociais na pandemia mesmo, foi o momento mais forte. A gente não estava junto, não podia estar junto e a gente tinha que fazer as aulas e os encontros, ficarem legais. Acompanhando pelo Instagram e pelo WhatsApp as coisas que estavam fazendo, as dancinhas. Inclusive, eu sou uma pessoa que super aderi às dancinhas porque eu adorava!
Só que a gente começou a notar que as crianças estavam dançando umas músicas que não eram muito legais. E como que a gente iria abordar esse tema com elas? Foi então que a gente começa a criar desafios. A gente dividiu o horário, a gente tinha 2 horas de encontro online. Em um momento uma delas escolhia uma dancinha, mandava a música e todo mundo fazia igual e depois a gente conversava sobre aquilo. E vinham as dancinhas, as letras das músicas, fazia aquela coreografia juntos cada uma na sua casa.
E era muito louco, porque a gente estava online, todo mundo sai da aula, grava dancinha, manda o vídeo gravado pelo WhatsApp. Depois apresentava na tela do computador e do todo mundo se via, cada um dançando do seu jeito. Depois era hora de conversar sobre a letra da música. “Que letra é essa? O que que ela tá falando?” E as respostas eram “Nossa! Eu nem percebi”, “Nossa! Eu não tinha percebido que ele falava disso”, “Nossa! Que machista!” E seguia a conversa sobre essas letras de músicas.
“E aí? O que que a gente pode fazer agora?”
“Então vamos procurar.” A gente passou dançar música afro, a dançar músicas que eram batidas africanas. A gente começou a criar e consumir um outro tipo de música, no mesmo aplicativo.
“Quem a gente está seguindo?” A gente só seguia pessoas brancas, por exemplo. E a gente passa acessar um outro público. Foi uma análise coletiva das coisas que estavam sendo consumidas e o que a gente poderia produzir enquanto coletivo. A partir daí saíram produções incríveis nesse momento! A gente criar danças e cada um dançar de um jeito.
Valéria e eu íamos à casa de cada uma para que elas não se deslocassem, mandávamos a coreografia que a gente iria fazer. Cada uma ensaiava na sua casa e gravava. Depois juntava e fazia um espetáculo e apresentava online. A gente fez várias coisas desse jeito.
Depois, quando o grupo volta ao presencial, a gente sente essa necessidade de trabalhar as danças urbanas, danças afro e olhar para o tipo de música que a gente está apresentando.
Houve uma formação depois com o espetáculo “Coisa de Preta” que trabalha com as danças periféricas. Tem o funk, o samba, a dança afro, a percussão, e a gente cria esse espetáculo online e a gente convida algumas professoras.
Foi muito legal porque o funk, por exemplo, Valéria e eu não manjávamos tanto. Elas nos ensinaram. As próprias participantes ensinaram pra gente dançar o funk, porque elas têm propriedade para isso. Foi um processo lindo com o grupo.
Depois a gente fez “Pontes”, que é nosso último trabalho. Eu sou muito do rap, gosto muito de rap e quando entrei em contato com essa música do Fábio Prado, já tinha visto algumas coisas sobre, na internet. Ano passado, saiu muita coisa sobre ponte, as pessoas estavam fazendo muitos trabalhos sobre. E vi um trabalho específico que me provocou muito. Uma pessoa fez um trabalho audiovisual, e eu falei “Mas, não é isso. Não é isso. O lugar que eu moro não é esta realidade”.
Fui pra casa, fiquei pensando nisso, até que entrou essa música no meu Spotify. “Caramba, que legal!” Fui pesquisar quem era ele, de onde ele vinha, que letra era essa e tal… E falei “Tá aí o espetáculo para a gente poder fazer”.
Trouxe, apresentei para a Val, para a Ju e ela falou: “Nossa! Incrível, tem tudo a ver com o grupo”. A gente ouviu a música do Lenine que fala sobre a ponte também, a gente viu outras referências.
E a Juliana de Menezes, que é a nossa parceira de trabalho, ajudou a fazer a coreografia e a gente dançou com as meninas. E a gente fez questão de filmar nestas pontes que separam a gente do outro público. Que são as pontes que separam, elas não unem. Elas, na verdade, nos separam. Fez questão também de poder se juntar e apresentar esta outra perspectiva e filmar no território onde a gente nasceu e foi criada.
A gente filma na favela do México 70, em cima destas pontes. Foi uma coreografia incrível. Foi o trabalho que deu muita gana pra gente, porque foi um trabalho todo coletivo. Desde pensar toda a estrutura, o figurino, porque a nossa gente não teve financiamento nenhum. Mesmo sem salário, por exemplo, mesmo sem recursos para fazer os figurinos.
Mas, teve vários parceiros e parceiras que financiaram o figurino delas. O cálculo de custo para cada figurino foi feito para sair em torno de R$ 150,00, fazendo questão das meninas poderem ter um figurino de qualidade, um collant bonito, sapatilha, adereço de cabelo. A gente conseguiu fazer com que todas tivessem.
Outro desafio que foi gravar. Como que a gente iria gravar em locais diferentes se a gente só tinha 2 dias para gravar? E como elas iriam se deslocar, porque uma ponte não é próxima da outra? E a gente acionou os amigos de novo. Conseguimos 7 carros! Eles ficaram o dia inteiro com a gente. Um grupo de mulheres veio para sede fazer a comida para almoçarmos e depois voltarmos pra gravar novamente. Foi um processo muito, muito incrível!
E finalizar a gravação dentro das palafitas em um espaço onde os barracos foram queimados e tem um buraco lá. Estavam as famílias, as crianças e todo mundo cantando a música e dançando. Isso, foi um processo muito bonito de construção coletiva e de resistência que a gente fez. Agora, a gente está aí pensando em como fazer esse ano. A gente não tem financiamento de novo e já está pensando em um projeto para o Coisa de Preta, para poder retomar as atividades e voltar aos ensaios… E é isso. A gente não para.