Um podcast cujo objetivo é lembrar o Brasil, Memória Popular Brasileira olha para o passado para entender o presente e se comunicar com o futuro. Trazer à luz histórias e narrativas que estão além do discurso da história oficial ou hegemônica é um ato político.
Se hoje a memória do Brasil tivesse um Instagram, quais personagens apareceriam no feed?
Paula Rosanne
Quais histórias estariam nos destaques?”
Registrar a memória periférica e contribuir com a amplificação de vozes que carregam histórias advindas das vivências da parcela da sociedade que muitas vezes é silenciada, oprimida, vítima de processos violentos da história aumenta nosso potencial de reflexão acerda da nossa sociedade e da realidade em que vivemos.
Qual foi a motivação para criar a Memória Popular Brasileira?
O Memória Popular Brasileira nasceu de uma preocupação com o revisionismo histórico perverso que passou a ocupar um lugar central nos discursos públicos do Brasil nos últimos anos.
Em um contexto de ascensão do Bolsonarismo, movimento que se baseia no não diálogo e na negação das relações desiguais de poder que atravessam o presente e o passado do nosso país, decidimos conversar com historiadores e representantes dos movimentos sociais para criar um espaço de diálogo e reflexão.
Quem são as pessoas que compõem a Memória Popular Brasileira? Aproveite, e conte um pouco mais a seu respeito.
O Memória Popular Brasileira nasceu de conversas entre amigues que em 2020, no auge da pandemia, começaram a se reunir de forma virtual para discutir o Brasil contemporâneo.
Estávamos muito assustados com a onda negacionista que havia atingido o nosso país.
Foi naturalizado um discurso que nega, ou minimiza, impactos de processos sociais traumáticos e violentos que marcam a nossa história.
Nosso objetivo era descobrir como chegamos no agora. Nossa proposta político pedagógica era olhar o presente contemplando a nossa trajetória como nação.
O projeto é realizado por mãos companheiras argentinas e brasileiras. Eu sou a roteirista e apresento o podcast junto com o Átila Martins. Na equipe também contamos com dois jornalistas, Catarina Loiola e Lucas Batista, que editam os episódios e realizam a curadoria das trilhas. Eduardo Cunha é quem cuida das nossas redes sociais. Lucila Matheu é a responsável pela nossa identidade visual e a Valéria Dallera pela gestão cultural e administrativa do projeto.
Para tornar o Memória sustentável lançamos uma linha de agendas 2023 que conta com ilustrações de heróis e heroínas da resistência popular brasileira.
Nossa agenda além de linda é pedagógica, já que nossa intenção é proporcionar a dose mensal de memória coletiva que todo brasileiro precisa para não repetir os erros passados e caminhar em direção a um futuro mais justo e inclusivo.
Cada mês vai contar com uma ilustração de personagens importantes para nossa memória coletiva, um calendário com os principais acontecimentos históricos, frases de reflexão semanal e recomendações de filmes, livros e músicas sobre o personagem ilustrado.
Além do podcast, a Memória Popular Brasileira se amplia para outros formatos? Se sim, quais?
Além de estarmos presentes nas principais plataformas digitais com o nosso podcast, o Memória Popular Brasileira está no Instagram e conta com um blog. Em 2023 queremos ter uma presença muito ativa no youtube.
Como é o processo de seleção dos temas e personalidades a serem abordados pela MPB?
Escolhemos os temas de acordo ao nosso calendário, que conta com todas as efemérides do mês. No nosso calendário registramos as datas mais importantes do ponto de vista da memória popular.
Em 2022 também produzimos duas temporadas: 1- “ Você tem fome de quê?” e 2- “Tem Coisa que é Melhor Esquecer?”.
Os temas dos nossos episódios e temporadas sempre são perguntas. A ideia é pensar e construir as respostas junto com os ouvintes.
Em 2023 vamos dedicar um episódio do nosso podcast para cada herói e heroína da resistência popular brasileira ilustrados na nossa agenda. Entre eles estão: Tereza de Benguela, Luiz Gama,Francisco do Nascimento, Maria Firmina dos Reis, Antonieta de Barros, Laudelina Campos Melo, Carolina de Jesus, Paulo Freire, Galdino Pataxó, Chico Mendes e Marielle Franco.
E, a partir de então, como é feita a pesquisa para elaboração do conteúdo a ser veiculado?
O tema memória coletiva está muito presente tanto na minha vida acadêmica como na militância. A parte teórica e conceitual dos episódios geralmente são nutridas pelas bibliografias que eu venho trabalhando para minha tese e artigos que escrevo para o mestrado.
Nos nossos episódios, além da análise mais conceitual e teórica, sempre buscamos conversar com representantes dos setores populares que conhecem bastante o tema a ser abordado, seja por suas vivências e memórias pessoais, seja por sua trajetória ativista e acadêmica.
A ideia é que o conteúdo seja passado de forma clara e descontraída, iluminando o presente com a lanterna do passado.
Paula Rosanne
Por qual motivo o podcast foi escolhido para ser o principal formato de distribuição do conteúdo?
Foi ideia do Lucas Batista, jornalista que compõe o time de memorioses e é o meu irmão.
Eu tenho muita dificuldade de gravar vídeos. Também não gosto de produzir e consumir conteúdos curtos.
Sabendo disso, o Lucas sugeriu fazer um podcast narrativo.
Com o podcast eu pude combinar duas coisas que eu adoro fazer, falar e escrever.
Quem acompanha a gente a mais tempo sabe que os primeiros episódios do podcast foram gravados em 2021, ano que passei por um tratamento oncológico. Nessa etapa da minha vida precisei me adaptar a mudanças muito significativas na minha imagem.
Sempre gostei da ideia de que a minha voz fosse mais importante do que a minha aparência. Gravando o podcast não importava se eu estava careca ou de batom, era só a minha voz e as minhas ideias.
É comum escutar que “brasileiro tem memória curta”, no seu entender, como uma pessoa cuja matéria-prima do trabalho é a memória, como este dito popular se manifesta (se é que se manifesta) no seu dia-a-dia?
Eu acho que esquecer é um mecanismo de defesa em nós brasileiros. É difícil assumir processos violentos no passado e enxergar suas marcas no presente.
Esquecer é uma forma de seguir em frente, encarar o presente sacudindo a poeira do passado.
O grande problema do discurso do “bola pra frente” é que existe muito do passado no nosso presente.
Existe uma cultura oficial de silêncio e olvido das violências estruturais tão presentes nos mais diferentes momentos de nossa história.
Ainda em se tratando da dita “memória curta” do povo brasileiro, há um ambiente em especial em que este tópico é mais destacado: política.
Existe uma memória oficial que se sustenta no esquecimento de processos históricos violentos. É o famoso discurso do “bola pra frente”, que sobrevaloriza o futuro e minimiza os impactos do passado.
Um exemplo foi a abolição da escravidão no Brasil desacompanhada de políticas de memória, justiça e reparação.
Se queremos um exemplo mais recente está a transição da ditadura para a democracia. Aarão Reis Filho fala que:
da ditadura fez-se a democracia, como um parto sem dor, sem grandiloquência, cordialmente, brasileiramente”.
Aarão Reis Filho
Essa cordialidade nas transições de um passado violento e traumático só é possível por meio do silenciamento das memórias populares e das vítimas.
Como você percebe as relações entre memória, esquecimento, politização e despolitização?
Mario Benedetti, poeta Uruguaio, tem um livro que fala que “o esquecimento está cheio de memória”.
A memória total é uma impossibilidade, estamos sempre filtrando no presente as coisas que vamos lembrar e o que vamos esquecer. Acontece tanto na nossa memória pessoal como coletiva.
Porém, quando se fala em memória coletiva a gente tem que ter consciência de que o que lembramos e esquecemos é disputado por diferentes atores sociais, com interesses, ideologias e objetivos variados.
O mesmo poeta também nos alerta sobre a ”amnésia dos impiedosos”. É um fato de que há quem se beneficia do esquecimento e da impunidade.
Culturas calcadas na oralidade, fundamental nas religiões afro, a memória é também elemento central para construção e reconstrução dos rituais, saberes, tradições e afins. Se você concorda com esta afirmação, poderia traduzir como a memória trabalhada na Memória Popular Brasileira e a memória coletiva destes espaços podem convergir?
A oralidade é o principal recurso para transmissão das memórias periféricas. Historicamente espaços oficiais nos negaram lugar de fala, mantendo-se essas memórias vivas, como muito bem mencionado, por meio das tradições, rituais, religiões, cultura, entre outras.
No nosso podcast a ideia é que as memórias dos apresentadores e entrevistados se misturem com as memórias do Brasil.
Materializamos essas memórias e as transformamos em um registro para as gerações futuras.
Outro ponto que seria interessante abordar é a questão do que é registro. Você poderia explicar o que é registro em comparação com o que é memória? Ademais, poderia comentar se o registro pode ser instrumentalizado em um sentido de disputa por poder?
A memória coletiva tem um forte poder de transformação no presente e por isso é sempre disputada por diferentes setores da sociedade.
A construção de símbolos, rituais, datas comemorativas, de reflexão, homenagens, estátuas e afins são formas da sociedade ressignificar o passado e até mesmo se comunicar com gerações futuras.
Quando a gente fala de memória coletiva é importante ser consciente de que é desigual o potencial de impacto dos diferentes setores sociais na sua construção. Além disso, a memória é disputada entre setores da sociedade com níveis de poder econômico, social e político diferentes.
Sabendo disso, é importante reconhecer que para construção de uma memória coletiva que seja popular, contemple as minorias e que reconheça as relações desiguais de poder que atravessam o presente e o passado do Brasil só é possível por meio de muita resistência.
Para saber mais a respeito da Memória Popular Brasileira, dos seus trabalhos e entrar em contato, quais são os canais?
Estamos no Instagram e no Facebook como @memoriapopularbrasileira nosso site é www.memoriapopularbrasileira.com.br.
O nosso agradecimento à Paula e à toda equipe do Memória Popular Brasileira pela entrevista. Além disso, ressaltamos que o podcast pode ser ouvido nas principais plataformas digitais, como Spotify ou Deezer. E, as agendas podem ser encontradas no Guia Loja Axé.